Muito antes da pandemia de coronavírus tomar de assalto os sistemas de saúde do planeta, as Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) já eram consideradas um problema sério de saúde global, com 1,5 bilhão de pessoas, em 149 países, acometidas por uma delas. Isso até 2020, porque em 2021 este número subiu para 1,7 bilhão. Pior: a queda na vigilância epidemiológica para essas doenças fez dispararem as taxas de mortalidade.
Além de lamentável, essa realidade é política e humanamente constrangedora, já que as DTNs são, em sua maioria, curáveis, tratáveis e passíveis de controle, mas acabam não sendo combatidas com a devida atenção porque acometem as populações mais vulneráveis do planeta, com baixo IDH-Índice de Desenvolvimento Humano, portanto com acesso limitado aos serviços de saúde e educação e outros direitos básicos.
De acordo com compilação que a OMS-Organização Mundial de Saúde atualiza todo ano, as doenças negligenciadas formam um grupo de 20 enfermidades infecciosas, de origem parasitária, bacteriana, viral e fúngica, que causam dor e incapacidade, com consequências sociais, econômicas e para a saúde de indivíduos e sociedades. Entre elas estão doença do sono, elefantíase, picada de cobra, teníase ou cisticercose, sarna, micoses profundas, entre outras.
Na 84ª posição entre 189 países que integram o ranking mundial do IDH, o Brasil concentra uma grande parte delas, sendo leishmaniose, tuberculose, doença de Chagas, malária, esquistossomose, hepatites, filariose linfática, dengue e hanseníase as principais. Embora ocorram por todo o país, as regiões Norte e Nordeste – com menor IDH – tem mais de 90% dos casos de malária, por exemplo, doença que apresentou o maior aumento na taxa mundial de mortalidade durante a pandemia: 82,55%.
Há uma crença de que as DTNs ocorrem somente nessas regiões, mas só para citar um exemplo, hansenólogos brasileiros têm alertado autoridades mundiais sobre a endemia oculta de hanseníase que ocorre não só no Brasil. A doença está presente em todo o país, é subdiagnosticada e é comum o paciente passar por vários serviços de saúde ao longo de anos sem diagnóstico. Quando descobre a doença já apresenta sequelas muitas vezes incapacitantes e irreversíveis. As DTNs afetam pacientes economicamente mais vulneráveis, famílias que vivem em aglomerados facilitando a transmissão das doenças.
Está mais do que na hora de agentes políticos trabalharem para colocar o assunto de volta às rodas de debates sobre saúde em nível global. Pedido neste sentido foi feito pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) aos governos das Américas, às vésperas do Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas, celebrado desde 2020 em 30 de janeiro – o deste ano teve como tema “Alcançar a equidade em saúde para acabar com a negligência com as doenças relacionadas à pobreza”.
A questão do enfrentamento às DTNs não passa apenas por diagnóstico e tratamento. Como alerta a OPAS-Organização Pan-Americana de Saúde, o controle das negligenciadas passa por educação, conscientização, saneamento básico, moradia, alimentação e acesso a direitos fundamentais. Quanto o Brasil perde em vidas, em afastamentos temporários ou permanentes pelo INSS, em tratamento de sequelas para doenças que deveriam ser diagnosticadas precocemente? Sem contar a dívida impagável do Estado para com essas populações.
A equipe de transição do novo governo já falou em priorizar campanhas de vacinação, prevenção de câncer, esforço para evitar desabastecimento de medicamentos, que são realmente importantes, mas para as DTNs, muitas vezes, precisa de vontade política porque há cura, há medicamentos que são doados ao país pela OMS e há a sociedade civil fazendo campanhas voluntariamente.
Há muitos desafios no caminho para essa estratégia, como a falta de informação, tanto entre as populações em geral quanto entre profissionais de saúde, o que alimenta os estigmas em torno das DTNs. No Brasil, não raro ainda temos editais para contratação de profissionais que proíbem a participação de pessoas com uma ou outra DTN, sendo que diagnosticados, esses pacientes entram em tratamento e podem desenvolver atividades dentro de suas capacidades físicas e intelectuais. Uma política multidisciplinar e abrangente para o enfrentamento desse problema deve trabalhar, inclusive, o preconceito e devolver dignidade a essa população.
Yussif Ali Mere Jr. é presidente da FEHOESP-Federação dos Hospitais do Estado de São Paulo
Fonte: Labornews